Entrevista: Dengue, flagelo sem fim?
A confirmação de um caso de dengue tipo 4 no Pará, durante a semana que passou, deixa a saúde pública em alerta no Estado. O virologista do Instituto Evandro Chagas, Pedro Vasconcelos, alerta para a possibilidade de uma grande epidemia da doença no país, a partir do carnaval, quando há grande fluxo turístico nas capitais brasileiras. Apesar do perigo iminente, o pesquisador esclarece que o tipo 4 da dengue não é mais grave que os outros e também estima que até 2016 a vacina para dengue deverá ser distribuída em todo o mundo. Pedro Fernando Costa Vasconcelos, 53, é pesquisador do Instituto Evandro Chagas há quase 30 anos, é médico virologista, doutor em epidemiologia clínica e pós-doutor em virologia molecular, integrante do comitê da Organização Mundial de Saúde (OMS) que analisa a criação de novas vacinas em todo o mundo e coordenador do Laboratório de Virologia do IEC.
P: Já há um caso de dengue 4 confirmado no Pará e outro já divulgado sendo investigado. Há possibilidade de outras pessoas terem sido infectadas?
R: Há. Não há casos suspeitos, mas investigações de pessoas que moram perto das residências onde casos suspeitos ou confirmados foram registrados. Porque se uma pessoa que mora em determinado local se infecta pelo vírus da dengue 4, a probabilidade de vizinhos e parentes também se infectarem pelo mesmo sorotipo é grande.
P: Qual a diferença da dengue tipo 4 para os outros que já há aqui na Amazônia?
R: Quanto ao aspecto clínico e epidemiológico, não há diferença. A sintomatologia que pode causar é o vírus da dengue clássico e hemorrágico e a transmissão é pelo mesmo mosquito, o Aedes aegypti. A diferença é só a genética do vírus, como eu, você, somos pessoas diferentes. A mesma coisa o dengue 4 em relação aos outros vírus do dengue.
P: Então, o tratamento clínico deve ser feito da mesma forma?
R: Exatamente, tudo igual. A única diferença é a suscetibilidade das pessoas do Brasil a esse sorotipo. Como este vírus não circulava no Brasil desde 1982, quando teve a primeira vez em Boa Vista (RR), a possibilidade de voltar a doença indica que pode ocorrer epidemia com grande número de casos. As pessoas não têm proteção, anticorpos contra esse vírus. Diferente dos outros sorotipos, em que já houve sucessivas epidemias, temos diferenças, anticorpos que protegem contra reinfecções pelo mesmo vírus. Quem já teve dengue 3, por exemplo, poderá se infectar, mas por outro vírus da dengue.
P: Aqui no Pará, qual o tipo de dengue que mais afeta a população?
R: Tem variado de ano pra ano. Depois que o vírus da dengue tipo 3 foi introduzido em 2002 aqui em Belém, a partir de 2008 começou a reduzir a incidência desse tipo, mas aumentou dos tipos 1 e 2. Hoje, os mais prevalentes são o 1 e 2, mas também tem ocorrido casos de dengue 3 em número menor, e agora de dengue 4.
P: O Instituto está analisando material de dengue de todo o país?
R: De grande parte do Brasil, dos Estados onde não se faz isolamento viral, nem provas moleculares, dando prioridade às áreas onde há suspeita de circulação da dengue 4 e que possa ser nova área com transmissão desse vírus. Hoje, temos já confirmados em Roraima, primeiro local, desde final de junho de 2010, mais de 40 casos. No Amazonas, uns dez casos confirmados em Manaus, e agora aqui no Pará, não podemos dizer exatamente o número de casos, mas já há um confirmado de Santarém Novo e outro suspeito de Abaetetuba. Antes de adoecer, o paciente de Santarém Novo passou pelo menos uma semana aqui em Belém. O certo é que provavelmente adoeceu em Belém.
P: Tem uma explicação para essa incidência na região Norte?
R: O que se sabe é que é região representa mais de 50% do território nacional e há grande parte de fronteira, desde o Amapá até Rondônia, em uma área quase desabitada. A passagem de pessoas quase não tem controle de um país para o outro. Se sabe que tem dengue 4 nas Guianas, na Venezuela, Colômbia, Equador e Peru. Roraima sempre foi uma área de maior risco porque lá há uma estrada que liga Boa Vista a Caracas. Esta área tem um trânsito constante de carros entre os dois países.
P: Não está descartada, então, a possibilidade de uma epidemia aqui no Brasil?
R: Não, principalmente por causa do carnaval, que traz muito turista internacional e um trânsito de pessoas entre os Estados. Recife, Salvador e Rio de Janeiro, principalmente, causam preocupação de desenvolver uma grande epidemia de dengue. As chuvas também ajudam porque aumentam a proliferação do mosquito, aumentando os criadouros, favorecendo a transmissão.
P: Neste aspecto de transmissão, grande parte da população se comporta como se não soubesse os perigos da dengue e ainda tem outro problema, o das árvores, que não têm poda adequada e acabam ajudando a formar criadouros, não é?
R: É verdade. Existem dois tipos de criadouros, um classificado de doméstico e outro fora do domicílio. Os criadouros dos domicílios são praticamente de responsabilidade dos moradores. Se cada morador, cada um de nós fizer o trabalho preventivo, sobrará pouco para o poder público cuidar dos criadouros externos. O que se verifica internamente nas casas é que a maioria dos criadouros está vinculado a armazenamento de água, porque não temos um sistema contínuo de água nas cidades brasileiras. Se as pessoas tivessem água continuamente nas torneiras, representaria um melhor controle contra a proliferação do mosquito. Mas, na verdade, o problema de saneamento, de fornecimento de água, favorece a proliferação do mosquito. O Aedes aegypti se prolifera em qualquer local que possa acumular água, copos, garrafas, pneus. Extradomiciliar, temos um problema gravíssimo na Região Metropolitana, que é um percentual muito baixo de esgoto sanitário. O acúmulo de água em valas, buracos, serve de criadouro. Além disso, temos um péssimo serviço de coleta de lixo. Aliado a isto, a população é muito mal-educada, costuma jogar lixo nas ruas. Tudo serve de criadouro, latinhas, copos plásticos, garrafas, pneus. Ficam abandonados nas ruas, enchem de água da chuva, o mosquito põe os ovos e em 15 dias eclodem e se tornam mosquitos e transmissores da doença. Assim que eles nascem, procuram imediatamente se alimentar, e o alimento é sangue.
P: Falta fiscalização?
R: Sim, se existe, deve ser falha, principalmente em relação aos pneus. Agora, com 25 anos de campanha no Brasil, eu não acredito que alguém ainda possa dizer que não tem conhecimento de como se deve proceder para impedir a proliferação do mosquito da dengue.
P: A situação da dengue aqui na Amazônia é diferente, pior que em outras regiões?
R: Não, basicamente a dengue é um problema grave de saúde pública em todas as regiões do país. A que tem melhor controle é o Sul, onde só o Paraná e Rio Grande do Sul têm transmissão autóctone. Santa Catarina não tem. Mas, como tem melhor saneamento, melhor vigilância e fiscalização, o número de casos é bem menor que nas outras regiões. Mas no Nordeste, Norte, Sudeste, a situação é grave. Isso tem muito a ver com saneamento, educação da população. Não se pode negar que é diferente a educação do nosso povo com o Sul do país. O grande problema é a falta de educação.
P: As campanhas informativas são eficientes?
R: As campanhas informativas, sim. Mas, de um modo geral, há poucos agentes de saúde, pouca fiscalização, para uma extensão territorial muito grande.
P: A população tem razão em ficar alarmada, mais temerosa com o surgimento da dengue tipo 4 na nossa região?
R: Não. É mais ou menos a mesma coisa. Talvez até um pouco menos em termos de gravidade. O dengue 4 circula há várias décadas em vários países da América Central, alguns da América do Sul e região do Caribe e também no sudeste da Ásia. Ao longo da história do dengue hemorrágico, estes países têm experiência bem maior que o Brasil e tem-se observado que embora todos os quatro sorotipos de dengue possam causar dengue hemorrágica, os tipos 2 e 3 são que mais têm sido associados com dengue hemorrágica. Não é que o dengue 1 e 4 não cause dengue hemorrágica, mas a experiência ao longo dos anos dos países com muito dengue há várias décadas, sempre tem sido observado isso, a associação dos tipos 2 e 3 tem sido bem maior com a dengue grave, dengue hemorrágica.
P: Isso tem a ver com a forma como a doença evolui no organismo ou com o vírus propriamente?
R: Não se sabe, mas aparentemente seria algum componente em relação aos outros vírus.
P: Em relação à vacina, estamos perto ou longe de chegarmos à vacina para prevenir a dengue?
R: Estamos perto. Faço parte do comitê da Organização Mundial de Saúde, que faz avaliação dessas vacinas. Qualquer país ou instituto de pesquisa que esteja trabalhando com vacina candidata passa obrigatoriamente pela avaliação desse comitê. O dengue é complicado. Já se está há mais de 40 anos investigando uma vacina. Só agora podemos dizer que muito em breve teremos essa vacina. Até 2015, mais tardar em 2016, já teremos essa vacina pronta. Há uma série de etapas que precisam ser realizadas e fiscalizadas para poder se colocar a vacina na praça. Havia duas sendo testadas de uma empresa americana e outra franco-americana. Uma delas foi descontinuada por uma série de problemas de efeitos colaterais. Atualmente temos uma vacina candidata da empresa francesa, mas sendo desenvolvida nos Estados Unidos pela Sanofi Pasteur, onde estão sendo feitos ensaios clínicos, já na fase 3. Após, os ensaios pré-clínicos em camundongos e primatas, se faz o teste em voluntários em quatro fases, que duram vários anos. Esta vacina já está na fase 3, em que o ensaio clínico é expandido para testes em vários países, aproximadamente 40 mil pessoas, incluindo o Brasil. Há quatro cidades selecionadas, Goiânia, Fortaleza, Natal e Vitória. Outras ainda poderão ser incluídas. Os testes começam a partir de fevereiro no Brasil, mas já está sendo testada na Ásia e América Central, geralmente em países com muito dengue.
P: São todos países com muita floresta?
R: Na verdade, em países com muitos casos de dengue. Nem sempre perto da floresta. A característica do dengue é mais urbana. O Rio de Janeiro tem pouca floresta e é o Estado com mais casos no Brasil. É uma doença da urbanização. A dengue está onde tem muito lixo, falta de saneamento, água encanada, onde a população é mal-educada.
P: A vacina será para todos os quatro sorotipos?
R: A vacina só interessa para todos os tipos. Existe um problema da dengue que é a fisiopatologia, o mecanismo de como a dengue ocorre, se replica em nosso organismo, como evolui para a dengue hemorrágico. Se sabe que a fisiopatologia da dengue é muito complexa. A gravidade da doença se dá por conta da infecção sequencial. Há pessoas que só tiveram uma infecção por dengue, outras que já tiveram duas vezes. Por essa teoria, a tendência é que a pessoa quando desenvolve a primeira dengue, o quadro geralmente é leve, com exceções, existem pessoas que morreram na primeira dengue. Por outro lado, quando a pessoa faz a segunda infecção por dengue - não se infecta por dengue 1 , seguida, de 2 e 3 e 4. A pessoa pode se infectar a primeira vez pelo dengue 3, 2, 4, 1. Imaginemos que a pessoa fez o dengue 3, passados alguns anos desenvolve o 2, o que vai ocorrer é que o quadro clínico será mais grave que a primeira infecção. Sempre a infecção secundária é mais grave. Também depende do organismo da pessoa e de uma série de outros fatores.
P: Como o Evandro Chagas atua no controle da epidemia?
R: O controle é feito pelas secretarias públicas de Saúde e Ministério da Saúde. Estamos testando em média 30 a 50 exames de dengue por dia. Do Pará, tem variado, mas estamos dando muito foco agora ao nosso Estado por causa dos casos suspeitos de dengue 4. Estamos com equipes colhendo amostras em Santarém Novo, Salinas, Abaetetuba e, a partir de Abaetetuba, começaremos a fazer busca em Icoaraci, pois a pessoa infectada é de Santarém Novo, mas tem uma casa em Icoaraci, mas passa maior parte na outra cidade, onde tem um sítio. Estamos mapeando os quadros para fornecer informações à Secretaria Estadual de Saúde para ações de controle, borrifação, eliminação de focos.
P: Em caso de uma epidemia de dengue 4, o Pará está preparado para o combate?
R: Nenhum Estado do Brasil está preparado para uma epidemia grave de dengue. Ao longo do tempo temos visto que a situação tem agravado e não é por culpa somente dos governos, mas muito em parte também é a falta de educação da população. Mas, o Brasil é o país que gasta mais dinheiro no controle da dengue.
P: Mas, gasta pouco em saneamento, não é?
R: É verdade, e esse é um grande problema, que sempre é uma pedra na ferida. Mas, eu não acredito que haja alguém neste país que não tenha tido acesso a informações sobre dengue.
Fonte: Jornal Diário do Pará (on line).
0 Comments:
Post a Comment