terça-feira, 20 de setembro de 2011

A lenda da Ilha da Pacoca



José Cardoso, navegador como todos nós que o barro de Abaetetuba procriou, amigo dileto do Orkut, arremessou um indignada e justa reclamação contra os gerentes de ontem e de agora de nosso arraial. É que nunca tinha lido em qualquer lugar a "Lenda da Ilha da Pacoca" nosso maior patrimônio fabulesco. Essa história permanece viva pela transmissão oral de nosso povo. Só por isso. Faltava zelo aos governantes para mandar imprimir um texto com esse patrimônio cultural abaetetubense.

Retruquei essa afirmação de José Cardoso dizendo que na Escola "Álvaro Guião" em São Carlos, São Paulo, onde concluí o 2º Grau, possui uma biblioteca muito boa, onde existia um exemplar da obra "Lendas Amazônicas" onde estava narrada a Lenda da Pacoca, embora ignorando nosso município. Foi, entretanto a única ocasião que li tal lenda. Aliás, só vil esse livro uma vez. Voltei a procurá-lo e não mais encontrei.

José Cardoso, Oficial da Marinha Mercante como dois irmãos meus e vários outros amigos, disse que não tinha conhecimento que algum filho da terra tivesse a hombridade de passar para o texto aquela história.

Ficamos por aí.

Passados alguns dias, dei-me conta que ele tinha razão e que tinha lançado aquele desafio para mim. Mandei uma mensagem aceitando o desafio mas propondo que ele ajudasse a completar a história, pois eu tinha lembrança do essencial, mas não tinha certeza quanto ao todo. Infelizmente não obtive resposta.

Tentei quietar, mas não consegui. O desafio merecia ser respondido à altura. Inclusive pela preservação do patrimônio de nosso povo.

Assim, escrevi a lenda.

A LENDA DA ILHA DA PACOCA

Demóstenes, no auge de sua juventude, sentiu ardor no peito. Não, não era doença braba, mas um não-sei-o-quê, um não-tem-lugar, uma apertação no corpo, uma friagem quente que nem ele, com seu sentir, podia explicar o que era. Tinha aparecido no arraial de N. Sra. da Conceição quando viu aquela mocinha, tão bonita como as girandas de brinquedos. Era a Sebastiana, filha mais nova do Velho Bruno, tecedor de matapi lá do Furo-Grande.

O doente de não-sabe-o-quê, filho único de navegadores dos rios e do mar, estava só no mundo desde a adolescência, quando o pai não respeitou a tradição de presentear os negrinhos-da-pororoca com a destilada cana de Abaeté, perecendo entre ondas e remansos do encontro de águas doces e salgadas.

Homem de habilidades, Demóstenes dominava a ciência de se conduzir pelas águas, salgadas ou doces, calmas ou revoltas, no claro ou no escuro, de qualquer forma. Se tivesse apenas uma enxó construía qualquer embarcação, dependendo da madeira e do tempo. A matemática dos mastros e dos cascos lhe pertencia. A mecânica dos astros, o cheiro e a direção dos ventos, e as marés, era tudo o que precisava para navegar em qualquer água. Cortava o pano com o cálculo da experiência , encerava-o com resina de plantas ou de peixes, organizando qualquer velame.

Não tinha paragem. Hoje aqui, amanhã outro porto.

Mas jurou ficar ponte pelo amor da linda Sebastiana.

Tanto cantou, tanto cercou, tanto falou e ouviu, que Sebastiana também sentiu ardor no peito , o não-sei-o-quê , a apertação, o não-tem-lugar, as friagens, ou seja, apaixonou-se pelo navegador Demóstenes.

Pediu a moça em casamento e levou, não só a benção de seus pais, mas uma terra para se quietar: um lindo paraíso de várzeas, igapós e terra-firme, chamada de Ilha da Pacoca porque lá moravam muitas pacas.

Demóstenes e Sebastiana fixaram residência e domicilio e se amavam mais e mais conforme o passar do tempo. Até que uma noite a esposa cai doente: febre, tremedeira, diarréia, vômitos e desmaios. Era necessário buscar auxílio na vila imediatamente. Mas a noite era de temporal e de águas agitadas.

O mestre navegante observou o tempo e viu que era praticamente impossível vencer as ondas, correntezas e remansos, com apenas uma montaria que possuíam na Ilha, pois, desde que casou, não mais possuía outra embarcação para não ser tentado a voltar a navegar como antes.

Mas era o tempo ou a morte de seu amor. Resolveu enfrentar a natureza. Mas quando buscou sua montaria, percebeu que o temporal foi mais esperto e levou a embarcação em suas brabezas.

O desespero tomou conta do corpo e da alma daquele caboclo. Não tendo alternativas, pegou sua amada mulher nos braços e jogou-se no rio para levá-la a nado até onde pudessem salvá-la. Entretanto, o rio o devolvia para a margem com fúria e força. Após várias tentativas, e vendo seu amor suspirando de morte, Demóstenes começou a gritar clamando pelos encantados da floresta e dos rios. Pedia clemência pela vida de sua paixão. Não obtendo resposta, correu para casa e pegou todos os panos que lá tinham e os estendeu sobre as árvores, amarrando-os pelas bordas e pontas, formando um velame. Agarrou o remo que sobrou da sua montaria e, na beira do rio, mergulhava-o na água com o movimento de quem rema.

Tentava, com o velame de seus panos e com as remadas de seus braços, transformar a Ilha da Pacoca em embarcação, navegando na noite de temporal para salvar sue esposa. Demóstenes gritava por todos e por tudo e, de repente, sentiu que a ilha se mexia e navegava. Alegre, foi abraçar sua esposa desfalecida quando teve o assombro de não mais sentir sua respiração e seu calor: Sebastiana não suportou e faleceu.



Num impulso indescritível, Demóstenes levantou o corpo de Sebastiana aos céus gritando com a voz de cem trovões quando aconteceu um encantamento: a Ilha da Pacoca se iluminou toda, com as luzes de centenas de faróis e luas; os panos feitos velas se inflaram, e a Ilha da Pacoca começou a navegar velozmente sobre as furiosas águas do temporal.

Assim, até hoje, quando se tem um temporal feio na região do Rio Maratauíra, nas proximidades de Abaetetuba, uma grande embarcação, toda iluminada, com velas e velas, surge singrando as águas do rio e lá se vê, em sua proa, um homem com uma mão no cordame e, em outro braço, um corpo de mulher. É a Ilha da Pacoca, encantada, com Demóstenes levando Sebastiana para tentar salvá-la.


Clóvis Figueiredo Cardoso

0 Comments: